
Possivelmente para poder acondicionar os 50 minutos do seu último álbum, o conceptual "No Fim Era o Frio", os Mão Morta entraram em palco cinco minutos antes da hora marcada. E, tal como prometido, fizeram do anfiteatro natural do Taboão o cenário dos pesadelos da sua distopia, num concerto que certamente se juntará à galeria de memórias marcantes de uma banda que já tocou neste festival por oito vezes.
Lançado em 2019, "No Fim Era o Frio" narra, com a devida decadência, um apocalipse ambiental e alienígena que, de forma estranhamente profética, encontra numerosos pontos de contacto com os últimos anos que vivemos, em termos de ameaças externas e desconhecidas, relações humanas ou desvarios tecnológicos. Talvez não espantem assim tanto estas semelhanças, afinal, se nos lembrarmos que a ficção tende a acertar mais nas distopias no que nas utopias...
Com a nova formação (Vasco Vaz, Rafael Machado e Ruca Lacerda nas guitarras, Rui Leal no baixo e Miguel Pedro na bateria) em grande forma, Adolfo Luxúria Canibal encontra toda a liberdade para, teatralíssimo, encarnar as histórias catastróficas que criou. ("Foi ele que escreveu?", pergunta um espectador ao amigo, depois de um intenso momento de spoken word. Foi, pois.) Contorcendo-se ao som de uma raiva quase punk, quase noise, ou embalando-se nos momentos mais contemplativos e vizinhos do pós-rock, é aos 62 anos um frontman em estado de graça. À BLITZ, disse há dias que o que "dá tusa" aos Mão Morta é continuar a "fazer coisas novas", ao invés de tocar "o mesmo repertório de sempre". Quem esperava ouvir 'Budapeste' ou 'Cão da Morte', terá saído desiludido - ou então surpreendido, e curioso para descobrir "No Fim Era o Frio", um invulgar exercício de imaginação em que a riqueza da música, nas suas texturas e dinâmicas, e o rasgo literário de Adolfo Luxúria Canibal se cruzam com estrondo e equilíbrio.
Para o álbum de memórias courenses dos Mão Morta ficará, acreditamos, a intensa apresentação - ou mesmo representação - de 'A Minha Amada'. A ideia de canção romântica para a banda de Braga, pelo menos neste contexto apocalíptico, começa com desejo carnal e acaba em canibalismo inter-espécies, descrito com pormenores repelentes e requintes de sadismo por parte de um narrador que, sem querer fazer spoilers, acaba decepado por um inseto gigante. Não será exatamente a banda-sonora ideal para alimentar paixões nas tendas do campismo, mas foi um dos momentos mais originais e intensos do serão, até agora.
"Nós somos os cabrões dos...", despede-se Adolfo Luxúria Canibal, pedindo ao público que, cada vez mais alto, grite o nome da sua banda. "Ainda bem que sabem", rematou, antes da triunfante saída de palco.
Segundos depois, Bruno Pernadas e a sua pequena orquestra começam a espalhar magia no palco secundário. Pode parecer normal, mas será injusto não destacar ora a riqueza e variedade da música portuguesa que se faz neste século, ora o incrível esforço de todos, nomeadamente das equipas técnicas, para que todos os horários estejam, até agora, a ser cumpridos escrupulosamente.
Vodafone Paredes de Coura: O anfiteatro dos sonhos foi o cenário dos pesadelos dos Mão Morta, num concerto para recordar - Expresso
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