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Friday, October 20, 2023

“Assassinos da Lua das Flores” nos cinemas: Scorsese mostra como os índios Osage foram traídos e eliminados pela ganância branca - Expresso

Baseado no livro homónimo que o jornalista americano David Grann publicou em 2017, “Assassinos da Lua das Flores” não é o filme que Martin Scorsese havia inicialmente previsto quando pegou no projeto. O livro tem um subtítulo — “The Osage Murders and the Birth of the FBI” — do qual Scorsese vai desviar-se consideravelmente. Digamos para atalhar caminho que a investigação policial desta não-ficção cedeu terreno a um desenvolvimento emocional muito mais vasto no guião cinematográfico, coassinado pelo cineasta, Eric Roth e pelo próprio Grann.

O resultado é um épico com produção à mesma escala, financiado pela Apple, que o exibirá em streaming após a estreia em sala, e o primeiro western — se é que assim se pode chamá-lo — de Scorsese, ele que, aos 80 anos, não se tinha ainda aproximado do mais clássico dos géneros do cinema americano.

O filme exige fôlego, com o cronómetro a bater no final 3h26 de duração que podia ter tido melhor síntese, é aventura em scope feita para a sala e espetáculo digno de ser visto, pois claro, no maior ecrã possível. E se a escala é alta, também o é a nível simbólico, já que por aqui sente-se o peso da história da América do século passado. Como é seu hábito, documentou-se Scorsese exaustivamente sobre o assunto que pegou em mãos e andou anos nisto, tantos que, pelo meio, até realizou outro filme, “O Irlandês”. Nunca a palavra “assassinos” — e note-se que a obra de Scorsese está cheia de retratos de violência — ocupara até hoje, assim tão de chofre, o título de um filme seu.

Martin Scorsese na estreia do filme "Assassinos da Lua das Flores".

VALERIE MACON

Às tantas, não se dirá quando, numa ‘aparição’ rara mas não inédita na sua filmografia, o próprio Scorsese surge no ecrã a recordar que este é um filme biográfico baseado em acontecimentos históricos e em gente horrivelmente cruel que escreveu a sangue a história dos Estados Unidos. É um gesto político evidente em que o cineasta se dirige aos seus, ao seu país, mais do que isso até, uma chamada à responsabilidade do Ocidente, como que a clamar um ato de contrição necessário: não é este o momento propício para a América branca assumir de facto os crimes de genocídio impostos aos povos indígenas?

“ONDE ESTÁ O CORAÇÃO DESTA HISTÓRIA?”

“Assassinos da Lua das Flores” relata uma velhacaria sórdida, um martírio maliciosamente orquestrado, desde o momento em que Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), militar recém-chegado a casa após ter combatido na I Guerra Mundial, começa a trabalhar para o seu tio William Hale (Robert De Niro), um barão do gado de ambições sem freio. Naqueles anos 20, Hale criava vacas nas terras que sempre foram dos índios Osage, eles que detinham então sobre as mesmas direito legal. É nesta altura que as primeiras prospeções descobrem que o subsolo do Oklahoma, encarado como terra pobre e longínqua de tudo, estava afinal carregado de petróleo.

Os Osage tornam-se nababos de um dia para outro, empanturrados pelo ‘dinheiro branco’ que depois quase os liquidou, o filme, de resto, documenta ao detalhe este aspeto muito curioso a nível sociológico. Nisto, começam os índios a ser assassinados em circunstâncias obscuras, um por um, família atrás de família. O filme isola Hale como o principal perpetrador destes crimes numa altura em que ele convence o sobrinho Ernest a casar e a constituir família com Mollie (Lily Gladstone), uma herdeira Osage. O plano de Hale é o de sabotar a comunidade índia pelo seu interior, pela filiação, usando o casamento para contornar a Lei. Ele próprio simula pacientemente uma amizade que depois será traída — é assunto de Scorsese por excelência, nada distante dos seus filmes sobre as máfias de Nova Iorque.

Martin Scorsese (de pé), com Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone e Robert De Niro (da esq. para a dir.), nos bastidores de “Assassinos da Lua das Flores”

Courtesy of Apple

No filme, toda esta trama diabólica é construída a passo suave como gangrena que se alastra, sem que as personagens revelem de um só cartada as suas intenções, De Niro é absolutamente fenomenal a diluir os propósitos de Hale, Ernest, pelo seu lado, é particularmente ambíguo e exige imenso de DiCaprio já que o sobrinho usado como isco apaixona-se, de facto, por Mollie, numa vertigem de sentimentos abissais e contraditórios, entre a obediência cega ao tio e a ingenuidade culpada dos seus sonhos de juventude. É também nesta altura que aparece no desterro de Oklahoma um tal de Tom White, o agente do FBI que está no centro do livro de Grann e papel que Scorsese havia inicialmente proposto a DiCaprio (acabou por ser interpretado por Jesse Plemons).

Criado poucos anos antes, o FBI era algo que nem todos sabiam ao certo para que servia, e ainda menos naquelas paragens. A morte súbita de tanto índio endinheirado começa então a ser investigada com outro grau de profissionalismo. Só que o filme que agora chegou às salas não ‘estava aqui’. Num certo dia, enquanto liam e reliam o guião (foi Scorsese quem o disse na conferência de imprensa do último Festival de Cannes) DiCaprio perguntou ao cineasta: “Onde está o coração desta história?” Não estava na investigação, mas nos laços de sangue, na relação entre o tio Hale e o sobrinho Ernest (a personagem de que menos se sabia a nível histórico), na relação deste com Mollie. E Scorsese devolveu a DiCaprio a provocação: “porque não fazes tu o Ernest?” Grann anuiu, livro e filme começaram a divergir neste momento.

“AQUILO FOI RACISMO, NÃO HÁ OUTRO NOME”

Numa roda de imprensa cannoise, infelizmente muito curta, com De Niro e DiCaprio sentados lado a lado, estes dois vultos do cinema americano atual recordaram o momento do seu primeiro encontro de trabalho, foi em “This Boy’s Life” (1993), filme de Michael Caton-Jones que por cá se chamou “A Vida Deste Rapaz”, era DiCaprio um miúdo, ainda sem horizontes de “Titanic”. Em seguida, De Niro ‘atirou-se’ a Hale. “A minha personagem é um mistério, acho que o Bill Hale não é compreensível como ser humano, eu pelo menos não o entendo. As suas motivações nunca são claras. Não sei se lhe hei de chamar simplesmente a banalidade do mal, ou o mal na sua pura essência, o que sei é que isto não é novo, vimos o mesmo noutras sociedades e noutros tempos, incluindo os nazis antes e durante a II Guerra Mundial. Bill é a natureza humana no seu estado mais deprimente, quando as pessoas se tornam capazes de fazer coisas horríveis.”

Sobre a primeira versão do guião, acrescentou DiCaprio que ela “estava muito próxima de uma ideia de policial, era uma história detectivesca que a meu ver não abrangia o enquadramento social em jogo nos anos 20 nem a confiança que a comunidade Osage nos deu quando fizemos o filme. Aquele período no Oklahoma foi tumultuoso e violento. Nós estávamos em plena rodagem durante as cerimónias que recordaram o 100º aniversário do Massacre de Tulsa (um dos maiores incidentes de violência racial da América no século XX), que fica a meia hora de carro do lugar em que os Osage foram aterrorizados. E fomos a Tulsa de propósito. O primeiro assassínio dos Osage ocorreu igualmente em 1921. Foi uma coincidência incrível estarmos a contar esta história exatamente 100 anos depois”.

De Niro já conhecia o livro quando a adaptação foi posta em cima da mesa, destacou a relevância que ali é dada a Tom White, “mas este filme tenta outra coisa. O Marty (Scorsese) resolveu apostar nas relações entre as personagens. Isto abriu ao filme outra dinâmica e um mundo de possibilidades. Contornou-se a ideia um tanto previsível do agente do FBI que chega para pôr fim às mortes e restaurar a justiça, como acontecia nos westerns. O papel de Tom White é esse, instaurar a ordem no faroeste em que as leis eram feitas por quem lá estava e de acordo com as suas conveniências. Os brancos estavam entranhados na comunidade Osage e a matá-los em completa impunidade. Aquilo foi racismo, não há outro nome”.

“Trabalhámos imenso sobre os factos e o contexto histórico. Demos o nosso melhor para ajudar Scorsese a tocar no lado mais negro da condição humana”
Leonardo DiCaprio, ator

“Todos nós trabalhamos imenso sobre os factos e o contexto histórico”, continuou DiCaprio, “dos quais realçámos os valores morais em causa, ajudando ‘Assassinos da Lua das Flores’ a aproximar-se, afinal, daquilo que é por hábito um filme de Scorsese. Demos o nosso melhor para ajudar o Marty a fazer o que ele faz de melhor, a tocar no lado mais negro da condição humana, em todas as suas complexidades. Uma das coisas que mais me marcou nos testemunhos verídicos de Ernest e de Mollie é a passagem em que ele explica o seu papel neste plano horroroso. Muitas mulheres Osage começaram a casar-se com homens brancos que vinham literalmente à caça delas para as manipularem e lhes roubarem o dinheiro do petróleo. E no entanto, Ernest e Mollie continuavam a gostar um do outro, tornando toda esta história ainda mais negra. O maior desafio do filme foi conseguir desvendar esta relação, que ultrapassa todo o relato policial. Não foi fácil, levámos anos a chegar lá.”

DiCaprio realçou também que, num acaso de circunstâncias, no estranho caldeirão cultural em que o Oklahoma se tornou após a descoberta do ouro negro, os Osage tinham passado de “escravos livres” a uma comunidade que, de repente, tinha inventado a sua própria economia. “Só que aquele é também o tempo do florescimento acentuado do Ku Klux Klan e da supremacia branca. E dá-se um choque de culturas. Para certos colonos brancos, atacar pessoas de cor não foi menos do que uma corrida ao ouro.”

E o perdão, onde está ele, sempre tão presente em tantos filmes e na eterna costela católica de Scorsese? Qual é a sua fronteira, o seu poder, neste filme de tanta maldade? Sem querer revelar mais do que a conta, até porque esta saga merece ser vista pela audiência com toda a frescura de uma descoberta, vai ser preciso estarmos atentos a Mollie e ao espantoso trabalho que Lily Gladstone impõe ao papel — ela que, nascida no Montana, é mesmo índia de corpo e de espírito. Mollie vai buscar energias sabe-se lá aonde, contra ventos e marés e uma morte lenta que o espectador a partir de certo momento acompanha com angústia nas cenas mais intensas de “Assassinos da Lua das Flores”.

Não é, dir-se-á, assunto novo para Scorsese. Este tipo de coragem e de resistência femininas já existe no universo do cineasta pelo menos desde a Ellen Burstyn de “Alice Já Não Mora Aqui”. Mollie é uma personagem fundamental do filme. É ela quem equilibra tudo o que dos Osage parece por vezes ficar em pano de fundo, por mais que este filme documente e construa sobre os índios um olhar frontal e justo. Nos seus olhos sedados, há uma chama que não se apaga. Naqueles olhos, está o peso da consciência de um país inteiro, à escala da nossa civilização.

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