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Wednesday, March 9, 2022

“Mulheres que fazem barulho”: capítulos dourados da história do rock português escritos no feminino - Expresso

Um vestido curto, tamanho de criança, está colocado num manequim infantil e Lena d’Água contempla-o com um carinho proporcionado pelas boas memórias de um passado livremente feliz. “Usei-o quando já estava nos meus 30 anos. Era uma minissaia a sério, mesmo muito curtinha, com que apareci no vídeo de ‘Bela Adormecida’, um dos temas do meu álbum ‘Aguaceiro’, editado em 1987”, recorda a cantora, com a inseparável boina afundada nos longos cabelos castanhos, imagem de marca registada de uma lenda do rock nacional.

“Foram dois anos, no máximo, em que usei minissaias em palco. Depois passei a apresentar-me de calças. Sentia que a minha aparência desviava a atenção do público. Eu não estava ali para mostrar as pernas – já estavam mostradas, já toda a gente as tinha visto – e queria que ouvissem aquilo que tinha para transmitir ao mundo”, conta, ao Expresso, a artista que, aos 65 anos, assegura estar “aqui para as curvas”, pronta para mandar os críticos dar uma volta. “Irritava-me muito quando alguém dizia: ‘Ai, ela tem uma voz tão limpinha. Isto não é nada rock, é música ligeira’. Os críticos musicais da altura fartavam-se de repetir isso. Graças a Deus e aos meus genes, sempre fui muito afinada, mas isso era-me apontado como se fosse um defeito. A minha voz é esta, desculpem qualquer coisinha”, ironiza a autora de “Desalmadamente”, título do seu último álbum, lançado em 2019.

FOTO: RUI DUARTE SILVA

“Criaram um estereótipo sobre mim. Eu era a menininha da pop e senti um certo desdém. Sentia-me um bocado Peter Pan. Não usava as minissaias para me fazer sexy, só que realmente eu era bastante gira”, atira Lena d’Água, entre risos. Só lamenta que, naquela época, “não tenham dado o devido valor a algumas músicas, gravadas nos anos 1980, como ‘Nuclear, não obrigado’ ou ‘Jardim Zoológico’ contra os animais em cativeiro”.

Lena d’Água sempre fez “tudo ao contrário do que era esperado”, à sua maneira, a desafiar preconceitos. “Fui mãe aos 19 anos. Primeiro tive um bebé e só depois é que entrei para os Beatnicks [banda de rock progressivo]”, lembra Lena d’Água, ícone agitador de uma geração. “Todas nós, mulheres do rock em Portugal, somos umas guerreiras e vemo-nos como uma família”, conclui, até porque tem urgência em abraçar e beijar Ana Deus, vocalista dos Ban e dos Três Tristes Tigres, acabada de chegar à Casa Comum da Universidade do Porto, onde foi, esta terça-feira, inaugurada a exposição “Mulheres que fazem barulho!”, aberta ao público no edifício da Reitoria até 30 de setembro.

A mostra, organizada pela Casa Comum e pelo Instituto de Sociologia da UP, tem como propósito homenagear 16 mulheres “relevantes do rock português” desde o pós-25 de Abril até à atualidade. São elas Lena d’Água, Ana Deus, Anabela Duarte (ex-Mler Ife Dada), Manuela Azevedo (Clã), Xana (Rádio Macau), Ana da Silva (The Raincoats), Ondina Pires (Pop Dell’Arte, Ezra Pound & A Loucura e Great Lesbian Show), Beatriz Rodrigues (Dirty Coal Train), Cláudia Guerreiro (baixista dos Linda Martini), Sandra Baptista (Sitiados e A Naifa), Marta Abreu (Voodoo Dolls e Mão Morta), Carolina Brandão (Sunflowers), Elsa Pires (Bee Keeper), Mariana Santos, Dulce Moreira e Ana Clément (CRudE).

FOTO: RUI DUARTE SILVA

A exposição está dividida em quatro quadros temáticos, intitulados “Viver Depressa, Morrer Tarde”, “Berrar mais Alto”, “Cansei de ser Sexy” e “Sementes do Futuro”, onde os visitantes encontram painéis informativos sobre cada uma das artistas, acompanhados por relíquias simbólicas dos seus percursos musicais, tais como discos e cassetes, roupas e adereços usados em palco, pautas e rabiscos de letras para canções, baquetas e instrumentos musicais.

“São mulheres que se tornaram visíveis e que fizeram barulho”, começa por dizer, ao Expresso, Fátima Vieira, vice-reitora da Universidade do Porto e coordenadora da exposição que “evidencia diferentes atitudes de estar na música, distintos modos de fazer rock, mas sobretudo mostra a música como forma de inovação, de criatividade e de exploração”.

Para a responsável, “é preciso tornar a mulher mais visível”, “fazendo com que o barulho destas se sinta e inspire outras mulheres para que façam mais ainda” nas diferentes áreas da sociedade. Até porque, observa Fátima Vieira, “não houve grande evolução, nas últimas duas décadas, em relação aos direitos adquiridos pelas mulheres”. E aponta para os índices de igualdade de género de 2019 e 2003. “Não houve praticamente uma mudança. Só há um terço de mulheres ministras ou deputadas. Só há um quarto de mulheres à frente das empresas”, constata. “Isto não tem a ver com uma avaliação imparcial das suas potencialidades, tem a ver, sobretudo, com uma avaliação muito enviesada”, defende a coordenadora da exposição.

“É o passado que legitima o presente. A ordem atual é legitimada por aquilo que fomos no passado. O que temos de fazer, então, é olhar para o passado e ver estas mulheres que fizeram barulho.”

Fátima Vieira, vice-reitora da Universidade do Porto

“Aconteceu com estas mulheres aquilo que se passa no mundo do espetáculo e que é muito triste: os homens, à medida que envelhecem ficam charmosos e as mulheres ficam simplesmente velhas, como se fossem descartáveis. É importante chamar a atenção para isso e ter hoje aqui estas artistas. Elas ainda estão cá e ainda podem fazer muitas coisas”, comenta Fátima Vieira. “As mulheres não podem ficar acabadas por causa da idade”, advoga.

FOTO: RUI DUARTE SILVA

Ana Deus não esquece os primeiros passos na música. Tinha oito ou nove anos quando cantou pela primeira vez em público. A professora inscreveu-a na primeira edição do Grande Prémio da Canção Infantil, em 1973. “A canção era deprimente e eu odiava-a”

Aquilo que Ana adorava era ficar a ouvir os discos trazidos para Portugal pelos retornados. “Os gajos estavam bué à frente e o país ganhou imenso com isso. O pessoal que veio das antigas colónias era muito mais moderno e estava muito mais avançado. Estava sempre metida em casa de um amigo, nascido em Moçambique, que me deu grande parte da minha biblioteca discográfica”, relata a voz dos Três Tristes Tigres.

Ainda muito jovem, aos 18 anos, saiu de casa. “Não era propriamente rebelde ou contestatária, só queria traçar o meu próprio caminho”, explica a cantora. “A partir daí fiquei entregue à minha sorte. Tornei-me completamente imprudente e, se não fosse isso, não teria conseguido fazer o que fiz. Não teria sido tão livre”, afirma Ana Deus. Nos primórdios, graceja, “fazia também muito mais barulho a cantar do que agora”. Estava na fase punk.

Ana Deus admite que “talvez algum público esperasse que a mulher fosse um elemento decorativo, que fosse bonita e jeitosa”. Havia, reconhece, “uma objetificação” do corpo feminino, mas “os fulanos que iam para a música eram quase feministas – quase, quase… não eram completamente”. Mas estavam “todos unidos pelo mesmo: quebrar tabus por essas noites fora”. “Eu apinocava-me um bocadinho, confesso, mas isso era perfeitamente normal”, refere a cantora.

Xana tinha apenas 16 anos e já dava concertos. A gravação do primeiro álbum chegou aos 18, quando era fascinada pelo glam rock de David Bowie e Marc Bolan. O país estava a descobrir a liberdade e a juventude estava sedenta de explorar tudo, mas ainda era muito pouco, muito tarde, o que chegava a Portugal. 

“Não havia acesso aos discos facilmente, tínhamos de os importar. Não havia discotecas ou lojas de discos. Muita gente que viajava para Espanha trazia imensas novidades e então ficávamos a ouvir álbuns em casa uns dos outros”, descreve a vocalista dos Rádio Macau. Nunca sentiu um tratamento diferente no panorama musical por ser mulher. “Sempre fui muito bem acolhida neste meio do rock”, garante Xana.

Eram outros tempos. “Quase todos os jovens estavam a meter um pezinho na música. Eram os anos 1980 e o rock era a grande energia que estava a surgir. Era um ambiente em que tudo estava ainda por fazer e havia uma vontade de explorar tudo”, exalta Xana. “A música era uma forma de expressão para a minha liberdade, num período em que o 25 de Abril tinha acontecido há pouco tempo e ainda estávamos num processo de reconstrução, após um longo período de trevas”, contextualiza a cantora.

“Era uma energia que me fazia querer contribuir para a comunidade. Irritava-me imenso quando se dizia que a música anglo-saxónica era melhor do que a portuguesa. Havia um orgulho de cantar em português, era uma forma de afirmação da nossa identidade”, sustenta a artista de 56 anos.

E com esta força se escreveu, no feminino, a história do rock nacional. 

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